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NÃO HÁ O QUE PERDOAR

O inconsciente - conceito central em qualquer abordagem psicanalítica - não tem descrição objetiva. O que significa que não é possível reduzi-lo à experimentação. Seu conteúdo é metapsicológico pois implica aspectos dinâmicos, tópicos e econômicos. O sintoma, por exemplo, engendra sofrimento pelos seus aspectos econômicos e, por isso, a psicanálise não trabalha com a ideia de sua extinção, mas com a regulação de sofrimento que ele gera. É numa ideia próxima a esta que Freud escreve em Estudos sobre Histeria a frase “transformar a miséria histérica em uma infelicidade comum”. No inconsciente há uma série de conteúdos latentes que não são tolerados pela consciência. Estes são os conteúdos recalcados. No entanto, tudo no psiquismo é psicodinâmico, ou seja, há um permanente conflito pulsional: o recalcado quer surgir e para que isso não aconteça há um contra investimento que resiste. Justamente por essa razão, o retorno do recalcado é o retorno de uma experiência cindida, onde o afeto que estava livre na consciência se liga a uma outra representação e tem a oportunidade de ressurgir. As resistências são, no limite, dispositivos que buscam reduzir a tensão do psiquismo. Mas, por vezes, a angústia é compulsiva e as resistências atuam como formações de compromisso que geram um sintoma que interdita certos aspectos da vida de alguém.

Uma vez, uma pessoa chegou ao consultório depois de muitos anos e foi dito: vamos trabalhar. Não se sabia o que iria acontecer. Somos frutos das inúmeras escolhas e erros que fizemos na vida. É preciso começar a olhar para isso para não continuar repetindo. Muitas vezes, somos tão estúpidos quanto podemos ser inteligentes e brilhantes. Devemos encarar nossa impotência, ignorância e limites. Sentimos vergonha de nós mesmos quando falamos algo que não deveríamos ou quando perdemos o controle e ofendemos sem motivo. "Por que não te calas?" é algo que o analista deveria considerar. Cabe a cada um encontrar as tramas dos seus "objetos" para ficar mais à vontade. Todo objeto compulsivo tende a ser fusional. E o que é fusional?


Vamos brincar assim: tem dois pedaços de papel, um é objeto, o outro é sujeito. Mas eles trocam de lugar o tempo todo, tem uma transa. Então, colou, virou um só, fusionou. Não tem mais sujeito nem objeto. Qual o resultado disso aqui, se você não trabalhar? Falência. É sempre uma questão de negociação com os outros. Porque, se não tiver negociação, você vai entrar num circuito em que você não considera o outro. Você pode ficar hipernarcísico, hiperalienado, e você fica transando com as porcarias que você come. Fica transando com o chocolate, fica transando com o café. Estou falando que é ruim chocolate? Não. Estou falando que é ruim café? Não. Não é ruim à princípio. Mas as coisas tem uma dimensão de múltiplas inserções que a gente tem que aprender a designá-las. Ninguém muda nada sem quebrar limites. A compulsão criativa, por exemplo, a compulsão de um atleta, a de uma pessoa que está trabalhando. Está pagando um preço. Sim. A gente não está na vida de graça. Tudo o que a gente faz tem um preço. A questão da psicanálise é: está bom para você? Se não está bom, por que você não falou? Se está bom, por que não falou? A religião tem uma “fala” que é ótima: “Fala com tua boca que Jesus Cristo é o Senhor”. É a redenção? É o perdão? É a Verdade? Para a análise, é a construção. Nada se redime, nada é tão verdadeiro, nada se perde, e, como em Lavoisier, tudo se transforma. A cada fala em que você se escuta você se revela uma nova pessoa e uma coisa maravilhosa também se revela, seu discurso, sua capacidade de reelaborar-se de ver-se, de escutar-se. E é desse esclarecimento que nos valemos para transar com a vida; vida que não é mole, é caminhadura, cama de tatame, como dizia o sábio Gilberto Gil, a quem eu convido a escutar e cuja maravilhosa música de certa forma resume muito do que foi dito nessas poucas linhas, principalmente no que diz respeito a “não há o que se perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”, compaixão por si mesmo, também, por que não?


Quem está na prática clínica ou já tem um percurso na psicanálise sabe da importância - inclusive anunciada por Lacan - de fazer o retorno a Freud. Revisitar os conceitos basilares à luz do próprio tempo é imprescindível na lida com o sofrimento contemporâneo.


Equipe Psicanálise Descolada

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