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ENTRE O ENCANTAMENTO E O TERROR: A INVISIBILIDADE DA VIDA PSÍQUICA DAS CRIANÇAS

Atualizado: 14 de fev. de 2023

“Os prazeres e os dias” foi o primeiro livro publicado por Marcel Proust, em 1896. Trata-se de uma coletânea de contos, alguns dos quais foram recentemente reunidos na obra “O fim do ciúme e outros contos”. Logo nas primeiras páginas do conto intitulado “A morte de Baldassare Silvade”, Proust descreve detalhadamente o embate de percepções e sentimentos vivenciado pelo menino Alexis, uma criança hipersensível que vai com a mãe visitar o tio moribundo que sabe que vai morrer em breve, o conde Baldassare Silvade.

“-Seu Alexis, não chore assim, o sr. Visconde de Sylvanie talvez lhe dê um cavalo.

-Um cavalo grande, Beppo, ou um pônei?

-Talvez um cavalo grande, como o do Sr. Cardenio. Mas não chore assim ....no dia dos seus 13 anos!


A esperança de ganhar um cavalo e a lembrança de que estava com 13 anos fizeram, por entre as lágrimas, brilhar os olhos de Alexis. Mas consolado não estava, pois precisava visitar seu tio Baldassare Silvade, visconde de Sylvanie. Claro, desde o dia em que escutara ser incurável a doença do tio, Alexis o vira várias vezes. Mas desde então, tudo mudara bastante. Baldassare percebera o seu mal e agora sabia ter quando muito três anos de vida. Alexis, sem compreender, aliás, como aquela certeza não matara o tio de tristeza, nem o enlouquecera, sentia-se incapaz de suportar a dor de vê-lo. Convencido de que este lhe falaria de seu fim próximo, julgava não ter forçapara consolá-lo, nem se quer conter o próprio pranto. Sempre adorara o tio, o maior, o mais belo, o mais jovem, o mais vivo, o mais doce dos seus parentes. Gostava de seus olhos cinzentos, seus bigodes loiros, seus joelhos, lugar profundo e doce de prazer e de refúgio quando era menor, e que então lhe pareciam inacessíveis como uma cidadela, divertidos como cavalos-de-pau e mais invioláveis que um templo.


(...) Alexis o imaginava ainda belo, porém solene, e ainda mais perfeito que antes. Sim, solene e já não mais inteiramente deste mundo. Assim, em seu desespero mesclava-se um pouco de preocupação e assombro” (“A morte de Baldassare Silvade”, p. 25-27)


Nesse trecho, Proust nos fala do ponto de vista de um garoto solitário que fica às voltas com o assombro que lhe provoca a ideia de se aproximar de alguém que está condenado à morte, essa desconhecida, mas ainda sem os recursos psíquicos que lhe permitisse entender o que estava se passando e expressar o que ele próprio estava sentindo.


Mais tarde, na obra “Em busca do tempo perdido”, Proust retoma esse embate vivido por uma criança que se vê as voltas com o terror que o acomete cotidianamente na hora de ir dormir ao mesmo tempo em que não sabe como expressar o que sente, na cena em que o narrador recorda o beijo de boa noite que ansiava receber de sua mãe antes de adormecer.


Proust transformou a forma de pensar o tempo. A memória involuntária narrada pelos personagens evoca não apenas fatos do passado, mas também sensações, provocando uma sobreposição entre diferentes temporalidades e espaços que muitas vezes parecem não se distinguir, como na lógica dos sonhos ou da realidade psíquica das crianças. Ao longo de sua própria história a psicanálise foi se transformando em uma prática que busca alcançar e tratar um número cada vez mais diversificado de pacientes e sintomas. Inventada por Freud na tentativa de formular uma resposta para os casos de histeria, adoecimentos que não podiam ser explicados pela medicina anátomo-clínica, novos pacientes com diferentes sintomas implicaram em novos dados, novas teorias, novos manejos e novos dispositivos clínicos. Portanto, se a clínica psicanalítica nasceu com a clínica da histeria, ela se desenvolveu e se transformou ao longo de sua história no intuito de criar condições de possibilidade para a emergência do inconsciente, associação livre, recordação e elaboração nos mais variados tipos de pacientes, dentre os quais, as crianças.


A psicanalista austríaca Melanie Klein, por exemplo, representou uma transição da psicanálise clássica (fundamentada por Freud) para uma psicanálise das relações objetais, sobretudo no papel que diz respeito à noção de pulsão na constituição do psiquismo. Se por um lado, o que define a psicanálise clássica são os fenômenos intrapsíquicos, por outro lado, Melanie Klein, a partir da experiência do atendimento de crianças em seu consultório psicanalítico, introduziu o papel do objeto de forma mais determinante do que na obra de Freud (ideia de que a libido não busca descarga, mas um objeto). Na teoria kleiniana, nem as pulsões nem os objetos são determinantes na formação do psiquismo. Ela propõe uma inter-relação entre aspectos pulsionais, intrapsíquicos, e ambientais, que na sua concepção não se separam.


Para Melanie Klein o brincar das crianças seria semelhante as associações livres dos adultos. Nesse sentido, através do brincar ela expandiu a concepção teórica e clínica da psicanálise, como disciplina interpretativa.


A partir da observação de crianças, Klein percebeu a existência de uma complexa ação recíproca entre as fantasias inconscientes da criança e sua experiência real, como evidenciam esses trechos de “Em busca do tempo perdido”, em que o narrador recorda a angústia e o terror que ele vivenciava na hora de ir para cama dormir:

“Todos os dias em Combray, desde o final da tarde, muito antes do momento em que deveria ir para a cama e ficar, sem dormir, longe de minha avó, o quarto de dormir tornava-se o ponto fixo e doloroso das minhas preocupações.

(...)


Eu desejava não pensar nas horas de angústia que aquela noite passaria sozinho em meu quarto, sem poder dormir; procurava convencer-me de que elas não tinham nenhuma importância, pois no dia seguinte as teria esquecido, e tratava de apegar-me a coisas futuras que me conduziriam, como por uma ponte, além do abismo próximo que me amedrontava.

(...)


Eu não desviava os olhos de minha mãe; sabia que, quando estivessem à mesa, não me seria permitido ficar até o fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, mamãe não me deixaria beijá-la várias vezes diante dos outros, como se fosse em meu quarto. De modo que me prometia a mim mesmo, quando começassem a jantar e eu visse aproximar-se a hora, tirar antecipadamente daquele beijo, que seria tão breve e furtivo, tudo o que eu lhe pudesse tirar sozinho. (...)Mas eis que, antes de tocarem a sineta para o jantar, meu avô teve a ferocidade inconsciente de dizer: ‘O pequeno parece cansado; deveria ir deitar-se. E depois, jantamos tarde hoje’. E meu pai, que não guardava a fé dos tratados tão escrupulosamente quanto minha avó e minha mãe, disse: ‘Sim. Anda, vai deitar-te’. Eu quis beijar mamãe; nesse instante ouviu-se a sineta do jantar. ‘Não, não, deixa tua mãe em paz, vocês já se despediram bastante; essas demonstrações são ridículas. Anda, sobe’. E eu tive de partir sem viático; tive de subir cada degrau ‘contra o coração’, como se diz, subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto da minha mãe porque ela não lhe havia dado, com um beijo, licença de me acompanhar. Essa escadaria detestada que eu sempre subia tão tristemente, exalava um cheiro de verniz que havia de certo modo absorvido e fixado aquela espécie particular de mágoa que eu sentia cada noite e tornava-a talvez ainda mais cruel para a minha sensibilidade, porque, sob essa forma olfativa, a minha inteligência não mais podia tomar parte nela.”


A realidade psíquica da criança, invisível para as figuras parentais e do cuidado, é para elas próprias tão real, mas tão real, que produz efeitos muito concretos e verdadeiros, de encantamento, mas também de terror. A esse respeito, vale dizer que Melaie Klein ampliou a noção de fantasia elaborada por Freud. Na concepção kleiniana, as axperiências reais tem impacto direto sobre as fantasias inconscientes das crianças. Ou seja, a fantasia está o tempo todo interagindo com a realidade, não é algo separado da realidade. A fantasia não é entendida, portanto, como apenas uma fuga da realidade (visão freudiana mais clássica). Para M. Klein ela também tem uma função defensiva, mas não apenas isso. A fantasia acompanha o contato da com a realidade, em constante relação. Entretanto, o ambiente não tem papel determinante nas fantasias da criança. Ou seja, um ambiente favorável, que consiga suportar o choro e o grito através dos quais a criança projeta no ambiente sua sensação interna de terror, não livra a criança desse terror, de suas pulsões de morte. É claro que um ambiente desfavorável pode atenuar essas pulsões, mas não livrar a criança de fantasias destrutivas que compõem o seu complexo mundo interno. Mesmo vivendo em um ambiente com condições objetivas favoráveis, uma criança estar aflita ou estar tranquila pode ser efeito direto daquilo que acontece e que ela vivencia de forma bastante real dentro de sua vida mental. Por isso, aos adultos, às figuras parentais e cuidadores, cabe sempre estar atento no sentido de apreender as fantasias que a criança vivencia de forma bastante real no seu mundo interno, não no sentido de corrigi-las ou puni-las, como recomendam os manuais da “boa educação”, mas sobretudo no sentido de protegê-las para que no espelho do seu olhar possam constituir psiquicamente um ego forte, portanto maleável.


A capacidade de uma pessoa pensar, já na vida adulta, depende da qualidade e da maleabilidade do seu ego. É analisando as relações do ego com objetos, internos e externos, e transformando, pela palavra, as fantasias inconsciente sobre esses objetos, que o analista pode afetar de maneira substancial a estrutura mais permanente do ego de quem, ainda na vida adulta e mesmo sem saber, sofre da falta ou do excesso punitivo e corretivo do olhar do outro, pois como disse Baudelaire, citado por Proust em um dos seus primeiros contos “há certas sensações de que o indefinido não exclui a intensidade, e ponta mais aguçada não há que a do infinito”.


Referências Bibliográficas:


GREENBERG, Jay R.; MITCHELL, Stephen A. Relações objetais na teoria psicanalítica. Porto Alegre: Artmed, 1994.


PROUST, Marcel; QUINTANA, Mário. No caminho de Swann. Globo Livros, 1982.


PROUST, Marcel. O fim do ciúme e outros contos. L&PM Pocket, 2020.


SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melanie Klein. Companhia Editora Nacional, 1966.



Coluna Leituras de Si - Por Adrianna Setemy



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