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CULPA E VERGONHA

Atualizado: 13 de abr. de 2023

Vou falar de dois conceitos que a psicanalise pensa e trabalha, mas não são restritos à Psicanálise — são questões que estão na dimensão da humanidade. A saber, CULPA e VERGONHA.


São dois elementos que estão postos desde sempre. Está nos livros, está na Bíblia. As dimensões da culpa e as dimensões da vergonha. E muita gente quebra aí. Quanta gente se atropela e se deixa estatelado no asfalto por conta de culpa e da vergonha.



Vamos começar com a culpa. CULPA é um AFETO, e o que é um afeto (para quem ainda não entendeu)? Afeto não é necessariamente aquela coisa de candura, de doçura, aí!, eu gosto de você, te faço carinho, faço um afeto... Nem tampouco afeto é bom, do tipo: você me faz um bem, você é afetivamente bom. Afeto não tem sexo e também não tem qualidade. Até que você designe. Tem qualidade em sendo designada. O afeto não é bom nem mal. Ele pode ser e ele pode estar. Estou pensando com o verbo SER na hora de tratar do afeto, para dizer que o afeto não tem nada a ver com o EXISTIR no sentido filosófico... Afeto tem como aparecer, como afirmação.


Já a CULPA é afeto que vem sentido; e aí passa a ser um sentimento que é como uma espécie de dívida que você tem em relação ao outro, que você coloca como questão irreparável: “Putz! fiz merda. Não devia ter feito aquilo, não devia ter falado aquilo, não devia ter me comportado daquele jeito. Errei”.


Ai, o que acontece? Você começa a ruminar a cena, a pensar no problema que você mesmo causou, começa a ter uma espécie de construção de um sentimento de culpa que vai aumentando, aumentando e aí é que você começa a se torturar (você já está se torturando). Essa tortura é que é o problema grave. A culpa é sempre a certeza de punição por você ter feito mal a alguém.


Culpa é a ciência de estar em dívida com alguém, de se ter transgredido, de ser ter feito o que não deveria. E a culpa é, também e principalmente, aumentada pelo nosso alto grau neurótico. A gente tem tanta, tanta consideração com o outro, esse outro mítico, mitológico que, às vezes, um deslize, uma palavra, uma coisa que você falou, e o outro pode nem ter escutado, mas internamente você já está se tomando como culpado. O tribunal interno já te julgou, já te sentenciou, e você já está na autotortura: porque você falou aquilo, porque você tomou uma cerveja a mais, porque você disse algo que supostamente possa ter ofendido...

É claro que a gente faz bobagem, besteira grande ou pequena, faz mal aos outros e a si próprio. Mas eu não estou julgando necessariamente esse ponto. Estou falando da culpa em si, que é a permanência de uma perquirição do pensamento, interna, onde você fica no centro de um julgamento, como em uma berlinda, e passa a ficar se detonando e sendo detonado porque você guarda a culpa, tem a certeza dela.


Porém, a culpa ⸺ por mais que ela seja interna e seja mantida internalizada ⸺, evidentemente que ela vem de fora, porque você se balizou em alguma coisa de fora, norma, padrão. Pense na religião: como você pode ser um religioso seguro nas tuas pulsões, nos teus impulsos, porque a sua religião lhe faz ficar contido, e a religião não precisa ser religião-Igreja... A religião pode ser: dogmas familiares, dogmas escolares, dogmas da cultura, dogmas da empresa em que você trabalha, e por aí afora.


O que eu quero chamar a atenção é para o fato de que a culpa ⸺ diferente da vergonha ⸺, ela é interna em alguma coisa que lhe obriga a se punir, a se culpar, a se perseguir, se maltratar, porque você acha, julga, tem certeza de que fez mal ao outro.


Mas uma vez que você passa a saber isso, você tem que aprender a dosar. Uma forma de saber dosar é a seguinte: você pode se desculpar e começar se desculpando a si próprio. Se puder, falar para o outro alguma coisa: “olha desculpa eu errei, foi mal”. Então, a gente pede desculpa e... resolveu. Supostamente seria isso.


O problema é que a dimensão neurótica é tão implacável que ela fica te obrigando a seguir se sentindo culpado. E aí, você não fez ⸺ e nem faz ⸺ nada para o outro, para a outra, para os outros. Você queria, teria vontade, como seria bom, como gostaria, como seria legal, mas não faz porque a culpa já está te consumindo internamente, a culpa já está te massacrando, está sendo corroído esse coraçãozinho machucado, o cérebro não para, e você fica se digladiando internamente, eternamente culpado.


Então, entendam: a culpa é orientada para perseguir, massacrar, maltratar você por algo que você possa ter feito ao outro. Portanto, é preciso tentar entender se o outro está mesmo ofendido e magoado... Há coisas pelas quais temos que pedir desculpas, óbvio, não estou entrando neste mérito, senhoras e senhores, estou entrando em outro mérito. Estou querendo dizer para você o seguinte: tem coisas que o outro nem percebeu, nem está aí, está pouco se F... para você, está muito se F... para você e você, bobão, bobona está aí se punindo, se massacrando, se batendo.


É isso a dimensão da culpa. Sabe Sófocles? Sabe Édipo? O que aconteceu com Édipo senão que ele, depois daquela tragédia (aliás, bota tragédia nisto!), se vocês forem ler os Édipo!... Porque Sófocles escreveu três, cada um mais carnicento, mais violento que o outro...E, destaque: é importante que tenha sido esse um dos grandes alicerces da nossa cultura, pois é uma forma de representar, dentre outras coisas, barbárie, ela própria. Ou de simbolizar ⸺ e introjetar ⸺ a lei. Tudo bem, até aí a gente sabe.

Mas o que acontece é que a gente paga um preço efetivo pela introjeção da lei e pela renúncia à barbárie!


E esse preço que se paga muitas vezes sai caro, ou seja, é desproporcional. Porque o outro não está nem aí para você; é você que está ‘encafifado’. Mas o que o Édipo faz? Ele se cegou. Depois do suicídio de Jocasta ele pegou o broche da roupa, furou os próprios olhos e se sangrou porque não podia mais tolerar ser visto e nem olhar pra si mesmo. Acabou toda a dimensão escópica. Era uma maneira de terminar sendo punido e parar. Édipo se autoimola porque se sente tão culpado que... acabou. Acabou e não tem papo. Ele exterminou a própria visão. E a vida dele foi-se, também, porque era um constrangimento interno e insustentável.


Pense o seguinte: já tem muito constrangimento externo; se a gente cria e alimenta um constrangimento interno, esse constrangimento é pior. Muito pior!


Agora vou falar da vergonha. Qual a diferença? Qual é o problema da vergonha? É que a gente tem vergonha, em geral, da gente mesmo. Pense na vergonha do corpo. Pense como as vezes você se sente constrangido porque o outro está te olhando, porque você pode não ser tão interessante ou tão inteligente, ou tão acertado, e você se envergonha e a vergonha vai murchando você. A vergonha é quando você se faz de objeto para o julgamento do outro. Então, não é somente você que está se culpando, é o outro que também já te engoliu por você ser pequeno PORQUE VOCÊ SE VÊ PEQUENO! Você faz de si a leitura de você ser menor! Você tem vergonha de se expressar de qualquer forma que seja, às vezes você tem vergonha de falar, de cantar, de brincar de dançar, de existir expressivamente um mínimo qualquer de si.


Quantas pessoas são contidas e que poderiam e que podem mostrar o afeto? Aí, nesse caso, o AFETO É TUDO O QUE AFETA. É tudo que bole por dentro, como diz a música O que será que será, de Chico Buarque ⸺ “bole por dentro” mas também bole por fora.


O afeto não tem dúvida de existência, o AFETO É!


Agora, ele se transforma. Psicanálise: arte de transformar afetos. Onde era angústia que se torne, por exemplo, tesão. Onde era o medo que se torne, por exemplo, bravura. Onde era o cagaço que se torne uma realização plena de alegria. Onde era tristeza que venha a expressão corporal, a dança do corpo. Onde era a ignorância que feria que venha o afeto da libertação, da liberdade.


Pois o afeto, ele é transitório. E vocês sabem que a Psicanálise insiste na ideia de que o afeto se desloca. É por isso que a gente pode fazer análise. Neste sentido, por que a análise funciona? Porque ela desloca o afeto. Neste sentido, a vergonha é um afeto que fica comendo por dentro, do mesmo jeito que a culpa, só que é uma ‘transa’ mais interna. É uma coisa assim: o que o outro vai pensar de mim? O outro vai julgar, vai avaliar meu corpo, vai julgar minha expressão, meu pensamento, meu desejo e vai me execrar, vai acabar comigo...


Vergonha e culpa são parecidas, porém não são a mesma coisa. Essa é a diferença. A gente tem vergonha porque é educado para sentir vergonha. Às vezes tem medo até para rir. Tem medo de chorar. O hábito de se ficar pedindo desculpas em excesso é um problema.


Dou um exemplo (e um alívio): que bom que temos as mídias sociais hoje, que a gente tem o Instagram, as Lives, o Reels o Tick Tok, o Linkedin, o YouTube! Que bom. Porque há muitas pessoas falando, muita gente que fala, e fala bobagem: Ah! É porque as pessoas estão se mostrando! Mesmo que estejam se mostrando, e daí?!... A gente se mostra porque quer se mostrar. E vê quem quer, também. Mas não é só isso. A gente está se comunicando, a gente está quebrando padrões ⸺ e se ‘desculpabilizando’. Antigamente, era só a TV Globo, era só a televisão, antes ainda, era só o rádio... Agora, não! A gente faz, hoje, um movimento diferente.


Então, o fundamental é a gente pensar como vencer a vergonha. Por exemplo, esse negócio de ser ‘sarado’, ser musculoso, ‘turbinado’, de meter silicone, Botox, é maneiro, muito legal. Mas quem disse que só assim se é bonito? Por acaso os ‘siliconados’, as ‘siliconadas’, os ‘turbinados’, os ‘hiperssarados’ são mais que os outros? São mais o que? Felizes? São mais interessantes? Depende dos olhos de quem vê! Ah, quem falou que o prazer sexual deriva da ‘turbinação’ do corpo? Nunca ouvi falar nisso. Quem falou que o amor, aliás, para de perseguir o amor.

O amor eventualmente cai como o fruto de uma arvore. Você ‘come’ ele. Assim como se come qualquer outra fruta. Ele vai embora. Deixa o amor partir, porque ele vai e vem...


O amor é a natureza! Não é seu. Esse negócio de “meu amor”. Seu? Coisa nenhuma! O amor está. É solto, livre. Amor, assim como o pássaro, é para voar. A gente pega carona no amor, mas depois sai dele, volta, sai, volta...


Tá bom, tem amores que a gente quer que sejam para sempre, aquela coisa toda...


E eu estou falando para vocês de afeto. E de como o afeto não deveria ser tão contra a gente. Esse artigo é para dizer que seria bom que o afeto fosse construtivo. E se a gente não tivesse tanta vergonha de pegar seja lá o que for, o instrumento que for, até o pau de self e fazer umas coisas meio maluquetes, até para as pessoas acharem graça e se inspirarem ⸺ e, no final das contas, a inspiração, aqui, é ilustrativa.


Pois, então, pensem o quanto somos consumidos por culpa e vergonha, como isso maltrata a gente e que isso, afinal, não é ‘tão’ necessário, assim. NÃO PRECISA SER O TEMPO TODO. A gente pode curtir, a gente pode estar. Às vezes pega um sol, às vezes pega uma chuva...


E é isso, gente! Vamos sair dessa perspectiva de “Ah! esse ano foi uma merda, foi difícil”... Foi difícil para muita gente; foi difícil de maneira diferente para cada um e para todo mundo. Mas também teve coisas boas, teve coisas legais, e, no final, de alguma forma, e de maneira diferente, a gente saiu do lugar, a gente se mexeu efetivamente.


Eu, com meus pacientes, se tem um trabalho que eu insisto com todos eles ⸺ e aí é uma coisa mesmo com todos ⸺ é fazer com que a gente saia do lugar, transite, experimente, mesmo que não se saiba bem para onde se está indo (e a gente nunca sabe, sempre tem percalços, mas vai tentando)!


Estas lives são momentos únicos e que eu faço com maior alegria porque dão a impressão de que estou realmente junto com vocês todos ⸺ vocês que gostam do meu trabalho, colaboram demais com meu trabalho e que são pessoas realmente queridas, pessoas com quem eu nunca havia estado antes na vida... Aliás, o que tem de analisando meu que eu ‘nunca vi na vida’, mas com quem estou sempre e continuo ‘vendo’ continuamente e abstraindo concretamente...


Pois a dimensão virtual não é fictícia, não é irreal, muito menos inexistente. O virtual é muito mais abrangente do que o real. O real, a realidade, é multifacetada, o que é há e é real, mas para ser real só na dimensão virtual. Agora a realidade é uma virtualização do real; e talvez a diferença seja que quando você consegue abstrair a sua vida para poder conectar o seu corpo ⸺ que é tudo que você tem ⸺ com os corpos que estão por aí. Há milhares de corpos na natureza, nas coisas, a gente vai conectando, transando como dá, com o que há...


De um jeito ou de outro a gente vai sair buscando corpos, elementos, sair buscando agenciamentos, como dizia o Deleuze, ‘transas’!


Porque ficar imerso em culpa e vergonha, ou nessa esperança de ser alguém ou ser alguma coisa algum dia, não vai te levar embora para ‘grandes’ lugares, vai te fazer sofrer, estagnar!


Então, ‘bora para luta! ‘Bora para a experimentação!


Carlos Mario Alvarez Conheça o conteúdo do curso Culpa e Vergonha: estudos sobre o superego

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