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A PSICANÁLISE E A CONSTRUÇÃO AFETIVA DA MATERNIDADE

No início de sua vida o bebê não é uma unidade: a unidade é a dupla mãe-bebê, sendo que a mãe é sentida como parte dele. Por isso, para a psicanálise, a matemática inicial da boa relação mãe-bebê é: 1+1=1. Esse é o tema do livro “60 dias de neblina”, de Rafaela Carvalho, que começa assim:


“Bem vinda à maternidade, em que um ser de 50 centímetros, que não aguenta segurar o próprio pescoço, precisa de você.

(...) Você...Você tentando consolar, e amar, e fotografar, e viver, e lembrar. A cólica precisa de você, o choro, o trocar, o alimentar, o banhar, o cuidar. O bebê precisa de você.

Você....rezando para que a madrugada acabe, mas implorando que o tempo passe mais devagar. Ah! O tempo...é ele que devagarinho traz outras coisas que precisam de você.

O sorriso precisa de você, o abraço, o olho no olho, as gargalhadas precisam de você. (...) O amor precisa de você; as emoções, os primeiros passos, o frio na barriga precisam de você.

E como nos filmes, em que no final há uma reviravolta, a gente cai na real. A partir do momento em que você segura o seu bebê no colo, na eternidade do sopro no ouvido “tá tudo bem, a mamãe tá aqui”, acontece: você precisa do bebê.

Você!” (CARVALHO, p. 9-11)

Esse trecho evidencia uma afirmação do psicanalista inglês Donald Winnicott, segundo o qual, a saúde emocional e física do bebê, ao nascer e nos primeiros meses de vida, depende do que ele denominou “preocupação materna primária”. Trata-se de um estado de extrema sensibilidade, que tem início ainda na gestação, no final da gravidez, e dura algumas semanas após o nascimento do bebê, consistindo no meio-ambiente ideal para que o bebê seja capaz de ser e crescer. A “preocupação materna primária” se caracteriza como uma espécie de fusão emocional entre mãe e bebê, em que ela é o bebê, e o bebê é ela, e na qual ele é capaz de satisfazer sua dependência absoluta. Segundo Winnicott, o bebê não existe sozinho, fora da relação com alguém capaz de suprir suas necessidades absolutas. Sendo assim, sempre que encontramos o bebê, encontramos a mãe.


Sobre a mãe, Winnicott nos ensina que ela necessita de proteção e esclarecimentos; precisa do melhor que a ciência médica pode oferecer no tocante aos cuidados físicos. Necessita de um médico e de uma enfermeira que sejam seus conhecidos e em quem deposite confiança. Precisa também da dedicação de uma rede de apoio, mas não necessita, forçosamente, que lhe expliquem antecipadamente o que se sente ao ser mãe, pois é na magia da intimidade pré-verbal, não verbalizada e não verbalizável, exceto talvez pela poesia, que reina a relação entre mãe e bebê. O saber da mãe, diz Winnicott, provém da sua capacidade de identificar-se com o bebê a partir de sua própria experiência de ter sido cuidada. Esse saber, diz ele, não pode ser aprendido em livros, cursos ou com profissionais da saúde, é intuído a partir da relação um a um com o bebê. Regrá-lo seria o mesmo que destruí-lo, privá-lo do seu principal atributo que é a pessoalidade e a espontaneidade da mãe.


Às mulheres, disse Winnicott, não ousem lhes explicar antecipadamente o que se sente ao ser mãe. Seria inútil. A autora dos ensaios de “60 dias de neblina” parece concordar, ao afirmar que apenas a maternidade faz entender “que toda definição de quem você é, o seu “eu”, irá se transformar no momento em que você presenciar o seu filho respirar pela primeira vez. E como num passe de mágica você passa a buscar a sua melhor versão” (CARVALHO, p. 25-26). Que assim seja, diria Winnicott à autora do livro, pois no início de seu desenvolvimento o bebê deve ser amparado pelo ego materno, pois é o apoio do ego materno que facilita a organização do ego do bebê, permitindo que com o tempo ele possa se tornar capaz de afirmar a sua própria individualidade e ter um senso de identidade. Para a Psicanálise, as primeiras relações materno-infantis, pré e pós-natais, constituem vias de acesso à saúde psíquica do futuro adulto, e nós psicanalistas aprendemos com Winnicott que os melhores instintos maternos provém não daquilo que ensinam os livros, mas de uma confiança natural da mãe em seus recursos próprios. A “ação materna”, segundo Winnicott, não resulta naturalmente do fato de ser mãe. Trata-se de uma espécie de força primitiva, intuitiva, que conjuga instinto de posse e até certa dose de contrariedade em momentos de exasperado humor, generosidade, energia e humildade perante o bebê, em sua alteridade.


Mas como a Psicanálise é uma teoria que pensa sempre a dimensão agonística, de embate entre opostos que não se excluem, mas ao contrário, só podem ser pensados um em relação ao outro, para além dessa “força estranha” de que nos falou Winnicott é preciso falar também do seu reverso: da fragilidade, do medo, da insegurança que uma mãe pode sentir nos primeiros dias com um bebê recém-nascido em casa, os tais “60 dias de neblina” de que nos fala Rafaela Carvalho:

“Você já ouviu falar no ditado “neblina baixa, sol que racha?”Se nunca ouviu, vou explicar. Dizem que quando o dia amanhece com muita neblina, é porque será um dia lindo, de muito sol. Este texto é sobre isso, sobre a neblina que chega antes do sol e do céu azul.” (Carvalho, p. 19)


Do ponto de vista do psiquismo humano, é essa confusão entre os opostos, vida X morte; amor X ódio; inconsciente X consciente; confiança X medo, e porque não, neblina X sol, que causa conflito, dor, sofrimento, dúvida, angústia, horror e também desejo: “Lembro que a minha cabeça girava toda vez que alguém comentava o quanto é maravilhoso e me perguntava se eu estava amando. E eu pensava: “Amando o meu bebê ou a vida no puerpério?” Sim, porque são duas coisas completamente diferentes. (...)

Olhe para a mãe com o bebê nos braços. Enxergue a mulher que não se reconhece. (...) Talvez tudo o que ela precisa é saber que é normal. A insegurança, as lágrimas que caem ao zelar o bebê que dorme, a sensação de que a vida acabou com a alegria de ela ter apenas começado” (CARVALHO, p. 27)


Uma dissimetria constante, talvez fosse uma boa definição para esses primeiros dias do convívio entre o bebê que chegou e a mãe que está se constituindo, algumas vezes ainda por vir: “A maternidade transforma. Só que se esquecem de mencionar que existe uma linha muito tênue entre se transformar e se perder. Ou talvez seja parte do processo. Para nos transformarmos, nos perdemos um pouco.” (CARVALHO, p. 28) Perder-se de si, não se reconhecer, justo quando a mulher mais precisa de um ego forte, que dê sustentação ao bebê em seu estado de dependência absoluta e sujeito às mais terríveis ansiedades que se pode imaginar, as chamadas “angústias impensáveis”. É nesse ponto que eu gostaria de chegar.


Se de fato Winnicott tinha razão ao dizer que não se pode explicar antecipadamente a uma mulher o que se sente ao ser mãe, por outro lado é importante conhecer relatos, depoimentos como o de Rafaela Carvalho, que sem qualquer pretensão pedagógica, vem dizer às mulheres que estão em processo de se tornar mães: “amanhã será mais fácil”, mas é preciso que você se cuide. A Psicanálise pode oferecer a uma mulher que está passando, ou que passou, por seus dias de neblina, a possibilidade de falar a respeito dos seus medos e da avalanche de afetos que passam a habitar o seu corpo e o seu psiquismo no processo de constituir-se mãe. É preciso validar esses sentimentos, ou, como bem diz Rafela Carvalho, “essa brecha de escuridão que, por alguns segundos, cobre a luz que está por vir”. Mais que validá-los, é preciso nomeá-los, integá-los a sua história de vida, à sua experiência. Afinal, a coerência do pensamento psicanalítico está em mostrar que as coisas não andam emparelhadas, simétricas, lado a lado e que é desse descompasso que advém o sofrimento, a dúvida, o medo e, consequentemente, a culpa. Entretanto, é esse não pareamento, essa dissimetria entre uma parte e seu oposto o que faz a vida mover-se, a pessoa se angustiar ou desejar. Por esse motivo nos sentimos constantemente fora de lugar e em constante busca de um lugar. Quando estamos diante de uma situação em que nos vemos deslocados, tendemos a produzir uma angústia, e o que é a maternidade se não uma desterritorialização , um exilar-se de si própria para transformar-se em território de outro, de outros. Se nesse processo a mulher não tiver a chance de falar para si própria, de se escutar, de se perceber, de validar seus sentimentos, poderá fazer ligações perigosas entre afetos (inconscientes) e representações (conscientes) que podem causar ainda mais sofrimento e dor. Por isso, se você é mãe e está atravessando o nebuloso percurso a caminho do sol, permita-se, através da arte de bem dizer a que se propõe a psicanálise, melhor fazer circular e equacionar os afetos que brotam com a maternidade de maneira que você possa se sentir mais à vontade com eles. Ser mãe não é algo intuitivo, tampouco espontâneo, é uma construção afetiva singular que se edifica e se solidifica dia a dia, ao longo do percurso entre o nevoeiro e os tão esperados dias de sol. Não há caminho único nem caminho certo para atravessar os dias de neblina, mas a Psicanálise pode te ajudar a fazer essa travessia de maneira mais espontânea e ciente de que nada do que existe, existe sem o seu avesso. Como diz o psicanalista Carlos Mário Alvarez, o afeto, transmutado pela Psicanálise, pode abrir caminhos que pareciam intransponíveis, pois o afeto se permite transmutar através da palavra. Para transformar-se, a ponto de constituir-se em ambiente propício ao desenvolvimento da saúde física emocional do seu bebê, você precisa, antes de mais nada, viver a sua verdade para não se perder de você mesma no meio do caminho. Nesse sentido, os afetos que advém da construção da maternidade podem ser revolucionários.


Referências bibliográficas:

CARVALHO, Rafaela. 60 dias de neblina. 2 ed. Curitiba: Editora Matrescência, 2019.

Winnicott, D. W. (1952/1988). Psicose e cuidados maternos. In D. Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves.

Winnicott, D. W. (1956/1988). Preocupação materna primária. In D. Winnicott, Textos selecionados:da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: F. Alves.

Winnicott, D. W. (1963a/1990). Da dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo. In D. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas.


Coluna Leituras de Si - Por Adrianna Setemy

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