Hoje falarei um pouco sobre essas dimensões que a gente sabe que existem, uma vez que fundamentam tanto a realidade psíquica quanto a realidade ‘extrapsíquica’, se pudermos forjar assim. Tema básico, elementos básicos que dizem respeito a como eu constituo a minha realidade e a como a minha realidade implica a mim e aos outros. Como sabem, um psicanalista não deixa de ser uma espécie de revisor de realidades para assim ajudar a transformá-las. Sofre-se de um certo aprisionamento em certa realidade e a tarefa de curar é desfazer os elementos que travam a vida de um sujeito em certa posição subjetiva, o que implica, é claro, em transformar a realidade de maneira que o mundo interno fique mais livre para se perceber e desejar.
A prática psicanalítica está sempre questionando a dimensão do eu, do mundo interno e do mundo externo. Só que o grande barato, a grande sacada, é perceber que não há uma fronteira, uma divisão, tão clara entre o dentro e fora, o ‘MIM’ e o ‘VOCÊ’. Senão, vejamos: ‘EU’ serei ‘VOCÊ’ sendo ‘EU’, sendo ‘MIM’, sendo... daí pra frente será sempre uma barafunda de confusões e rebatimentos imagéticos que fundam o eu e o não eu, o mim e o tu, o nós e os restos.
Existem chances de a gente tentar brincar com as dimensões da realidade e também brincar com a ideia de ‘SER’.
E o primeiro ponto é falar algo para vocês que não é muito usual: vocês ficam perdendo muito tempo quando ficam tentando ‘SER’. E eu me incluo aí, tá?! Quando eu falo ‘VOCÊS’, é um exercício de retórica porque, mal ou bem, eu estou tomando a palavra aqui, estou escrevendo um discurso. Porém, o ser humano, ‘NÓS’, temos uma espécie de vício existencial que é uma vontade de ‘SER’.
“Ah, eu não sei o que eu QUERO SER, QUEM EU VOU SER... EU NÃO SEI QUEM EU SOU”. ‘SER’ ou ‘NÃO SER’: that’s the question. Claro que faz sentido. Se você chegar para uma criança de 12 anos e disser: “filhinho, o que você quer ser quando crescer? ” você está perguntando qual é o projeto que esta criança quer para ela ao longo do tempo.
Quando uma criança é indagada sobre o que ela quer “ser” quando crescer, essa é uma pergunta muito importante para essa criança porque ela está em processo de montar a vida, está em processo de organizar a mente em alguma direção. Mas também é uma maneira de dizer “você ainda não é”. O que você quer ser em adulto se tornando?
Mas eu quero crer que esteja falando agora com pessoas adultas e que já passaram desta fase de “o que eu vou ser quando crescer? ”. Ao menos, supostamente o adulto já poderia ter descoberto que aquilo que é para ele, muitas vezes, um peso, um fastio, tudo aquilo que ele carrega recheado de frustrações e equívocos é, em grande parte, desnecessário. No entanto, indaguemos: por quê ainda tem muita gente que se formula “o que eu quero ser? ” mesmo sendo adulta? Aí eu vou dar uma puxadinha de orelha nos que pensam assim se colocando a baboseira da seguinte forma: “ah eu não sei o que quero ser. Ah eu não sei, eu não sei, eu não sei…”. Esse negócio de querer ser, volto a dizer, é vício! É vício de linguagem. É vício de ideologia. Isso vem em grande parte das questões existenciais da filosofia.
Sabe o que eu vou dizer de cara? TODO MUNDO JÁ É! Já é! Você não tem que ser nada. VOCÊ JÁ É!
Agora, você quer fazer alguma coisa, você quer melhorar, você quer piorar, você quer fazer uma cagada para cá, fazer uma melhorada para lá, você quer insistir na bobagem, você quer comer abobrinha, você quer falar abobrinha, aí já é outro papo. Mas essa coisa de querer SER é muito para os outros, né? Por exemplo: “você sabe quem eu sou? ” “Sabe com quem você está falando? ” Então, essa coisa do ‘querer ser’, que é sempre uma dimensão muito existencial, eu proponho que a gente passe ao seguinte: a gente já é, a gente já está, todo mundo que está lendo este artigo está vivo.
Você está vivo, eu estou vivo, estamos juntos nessa.
Então, o que ocorre, é o seguinte: talvez de imediato podemos pensar “EU ESTOU AQUI, EU JÁ SOU, O QUE EU FIZ ATÉ AQUI JÁ ESTÁ FEITO, O QUE EU VOU FAZER PARA FRENTE? ”
Assim, trocamos um pouco essa dimensão do querer ser, do querer estar, para “em estando, em já sendo, no que eu mexo? ” Aí eu volto à questão original. Essa questão do indivíduo e dos outros é uma formulação meio capenga, porque se a psicanálise mostra alguma coisa é que o inconsciente, que é isso que banha a gente, que funda a gente, que é nascente, o inconsciente é a barafunda do Outro. É assim... como a gente se confunde, a gente se mescla e se diferencia dos outros? Essa é uma boa questão! Às vezes você consegue ficar mais diferenciado, “ah eu sou diferenciado então me trate melhor”. Ah, tá bom, que seja. Se servir para seu casamento você pensar que é diferenciado, aí vai pedir para o carinha te tratar melhor, ou para a carinha te tratar melhor, está valendo. Mas tem hora que ninguém é diferenciado, todo mundo é a lesma lerda, entende? Tem hora que todo mundo é a lesma lerda e a gente demora para sacar isso, porque a gente é lerda. Podem rir à vontade! Afinal, quem disse que “ser” é coisa séria?
Então o que quero dizer com isso é que o grande barato é a gente conseguir ter uma transa interna e também com os outros em que a gente não fique tão confuso com as mixagens, com as mesclas. Com as mesclagens... E aí o grande barato é você poder dançar a vida aproveitando o vento, e aquilo que te cai no colo, ou aquilo que você busca e desfruta. Trata-se, portanto, muito mais de como alguém se posiciona e usa sua maquininha de existir, de produzir do que ficar empacado com os humores à serviço de uma pecha existencial que marca uma realidade muito fixada em um terreno infantil. O de ser. Lacan, à esse respeito, empregava a palavra DESSER (deixar de ser) para implicar o sujeito num processo dito de dessubjetivação.
Vejam, então, está muito mais para como eu vou aproveitar, como eu vou me colocar, como vou me dispor, me diferenciar, como vou agregar e desagregar dentro do necessário para poder sentar a minha bunda num lugar legal ou empinar minha bunda e sair voando - seja lá qual for minha fantasia e meus gestos -, mas que eu faça isso de boas. De boa ou de boas, essa também é uma questão não tão existencial, entendeu? É mais de conexão de “s”. Veja, explico daqui para frente: se eu não preciso ser eu já sou, o lance é onde eu fico melhor, onde é que eu me situo mais tranquilo, mais de boas, então eu vou ser alguém em movimento. Isso pulsa.
Todo mundo tem a sua TRIP. Pode estar ruim, pode ser uma neuramarga, uma neuradoce, pode estar empacada ou com gosto de empada... Alguém pode estar com um companheiro ou uma companheira de viagem ou estar em uma lotação, trem, qualquer coletivo que seja, que amontoe pessoas... O lance é onde você fica melhor. MELHOR. Onde é que as coisas ficam mais interessantes e, às vezes, a gente tem que ficar experimentando. Ficar pulando de galho em galho, de bar em bar e às vezes tropeçar. Que tal? Se caiu levanta. Mas se tá bom aí em baixo, que assim seja.
E aí tem o seguinte: o que ferra muita gente é não ter esse jogo interno, esse jogo, esse momento em que “eu” fico na minha e, por isso, posso me reinventar ou me recolocar, exatamente porque “eu já sou”! Gente, parem com esse troço de querer ser porque todo mundo já é! Agora, pensa o seguinte: como eu faço melhor? “Ah, eu queria ter aquilo”! Mas você não pode ter aquilo. Mas o que você tem que pode mexer? O que é possível fazer?
Então, meus caros, bora para a luta, bora para a experimentação, porque essa ideia, esperança, de ser alguém algum dia não te levará para nenhum lugar e te fará sofrer feito uma mula empacada, uma joça empoçada.
Bora para frente.
Ano novo, flores novas!
Carlo Mario Alvarez
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