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Foto do escritorAdrianna Setemy

MARGEM DA PALAVRA

Atualizado: 9 de mar. de 2023

"A Terceira Margem do Rio" é o conto mais famoso e uma das obras mais influentes de Guimarães Rosa, publicado em seu livro Primeiras Estórias, lançado em 1962.

O conto é narrado em primeira pessoa pelo filho de um homem que decide abandonar a família e toda a sociedade para viver dentro de uma pequena canoa num imenso rio. Ele começa nos contando o seguinte:


“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação.”


O pai é uma espécie de elemento de acesso, ticket que garante a aceitação e o reconhecimento de cada um de nós para fazer parte da experiência humana.



Mas porque o pai?

O pai é a figura que introduz uma espécie de escape possível para a relação simbiótica primária entre mãe e bebê. Ou seja, a pessoa só pode ter um “eu” se tiver uma figura que desempenhe a função paterna que consiste em romper a relação simbiótica/dual entre quem desempenha a função materna e o bebê. A figura paterna é, portanto, o elemento que permite que a vida do “eu” continue, pois garante a capacidade e a continuidade da capacidade de simbolização.

Mas quem é o pai?

O pai é aquele que foi reconhecido como tal, e nesse sentido, pode ser uma figura construída que garante a mediação entre o sujeito e o mundo, que autoriza o outro a pensar. A pensar o que? Pensar que ele próprio é, que ele próprio existe...


Tudo o que pulsa é desejante. Tudo o que existe, existe desejando. Não tem como não desejar. Mas o que é que se deseja? Contar uma história é uma tentativa de refazer algo traumático, doloroso na experiência de alguém, um ato que põe palavras, que busca reparação. Isso porque todo o discurso é endereçado ao outro – submetido ao ardor do outro. Assim, diz o narrador: “Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto.” O narrador parece se ressentir da austeridade do pai.


A mãe, por sua vez, está posta na matriz, a mãe é continente: “Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.”


O pai é “a terceira margem do rio”, “grande, fundo, calado que sempre”, aquele que está lá do lado de fora garantindo a existência de um.


O narrador conta que não pode esquecer do dia em que a canoa que o pai havia mandado fazer ficou pronta: “Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.”


Perto e longe da sua família, esse pai “nunca se surgia a tomar a terra (...) de dia nem de noite”. Mas e o lugar de pai? Como ficou depois de ter desertado para viver solitariamente? Mesmo nessa circunstância, o pai inscrito é alguém a quem se respeita, se teme e se submete. O pai é o que vigia, guarda, olha, assim como a mãe, que vigia e guarda desde o nascimento. Mas o olhar do pai é da ordem da aceitação, seguida de submissão.


“Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele. A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. (...) E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.”


Na neurose obsessiva são imensas as resistências a aniquilar a lei do pai para a partir dali fazer algo novo. A pessoa está sempre agindo de forma defensiva em resposta ao pai enquanto totem, poder, voz e corpo da lei:

“Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.


O pai, objeto de amor, é hipervalorizado e para além da distância física, está a uma distância subjetiva semelhante ao do ideal do Eu. Esse Ideal de Eu retorna sobre a pessoa de forma tirânica, na forma de Super eu. Então, a pessoa passa a ser acossada por um Super Eu tirânico que tem o pai como referência.


“(...) Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.”


Assim, o pai, objeto de amor torna-se, ao mesmo tempo, objeto de horror, de medo: “Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”


Quem eu sou? De onde eu vim? O que eu quero? - São perguntas que estão na esfera do nome do pai. A psicanálise se presta a questionar as formas de submissão ao outro em que alguém se encontra. Somos dependentes, mas o que podemos mudar são os graus e relações de dependência que temos. Nós nos colocamos diante do outro desde o momento em que nascemos. A mãe expele o bebê e do lado de fora há alguém para ampará-lo. Estamos o tempo todo referidos ao outro. O psicanalista ocupa o lugar da suposição de um possível para quem deseja, mesmo que a pessoa que procura o psicanalista não saiba o que deseja. Diferente da mãe, continente, e do pai, margem da palavra, o psicanalista deve ocupar um lugar à margem, onde seja capaz de suportar a demanda do paciente.


Referências:


DE ALMEIDA, Alexandre Mendes. O desejo no neurótico obsessivo. Psicologia Revista, v. 19, n. 1, 2010.


DE MELLO PISETTA, Maria Angélica Augusto. O SUJEITO SUPOSTO SABER E TRANSFERÊNCIA. Adverbum, vol. 6. Jan a jul de 2011, p. 64-73.


Disponivel em:

http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/adverbum/vol6_1/06_01_05sujeitosupostosaber.pdf


FARIAS, Camila Peixoto; CARDOSO, Marta Rezende. A ferocidade da culpa na neurose obsessiva: do desamparo à angústia moral. Psicologia em Estudo, v. 20, n. 1, p. 33-44, 2015.


ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Nova Fronteira, 2016.


Coluna Leituras de Si - Por Adrianna Setemy



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